Sobre a tirania do pensamento positivo

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​Passado o natal, permitam-me este título pouco católico para introduzir um tema que talvez possa ser útil agora que se aproxima o balanço do final de ano e a habitual lista de resoluções de ano novo.

Sem dúvida que o otimismo faz falta e é uma ferramenta essencial ao nosso bem-estar e à nossa motivação. Mas nos últimos tempos assistimos ao que habitualmente apelido de tirania do pensamento positivo. Na era da imagem abunda o apelo ao corpo perfeito, à casa perfeita, às férias de sonho, ao carro xpto, ao telemóvel de última geração, ao outfit mais in, aos filhos com maior QI independentemente do seu estado emocional, à imaginação e à conta bancária dos pais a gritar pela festa de anos mais hiper mega fantástica… Nas livrarias multiplicam-se os títulos que vendem receitas para aumentar a autoestima, a felicidade, a produtividade, a inteligência, a gratidão, a aceitação… Nas redes sociais multiplica-se o espetáculo de vidas perfeitas e de sonho de celebridades que incentivam o “aceita-te como és” e o “sê grato pela vida que tens” através de uma selfie irrepreensível com uma paisagem paradisíaca por trás.

Parece que estamos numa época confusa em que o “médio/normal” passou a ser mau, sendo a excelência o objetivo a alcançar, sem nunca nos podermos queixar. Porque no meio de tudo isto abunda a tal avalanche da psicologia positiva, as afirmações e os mantras e até a tentativa de elevar a meditação e o mindfulness a uma espécie de remédio para todos os males (sobre este tema falarei noutra altura). Frases como “o medo não serve para nada”, “o sofrimento é uma opção”, “não vale a pena estar triste”, “sê grato pelo que a vida te dá”, “não penses nisso”, “tens de relaxar” ou “em vez de pensares nas coisas negativas, pensa nas coisas positivas” são alguns exemplos de como se parece tentar contrariar emoções que fazem parte do ser humano e, muitas vezes, são até um sinal de saúde mental. Digamos agora a uma pessoa profundamente deprimida que tenha força de vontade, que pense positivo e deixe de lado as tristezas; o mais provável é que fique ainda mais deprimida, com um forte sentimento de desadequação e incapacidade perante algo tão simples como pensar positivo.

Multiplicam-se também os treinadores de bem-estar que confundem objetivos de desenvolvimento pessoal com a necessidade de intervenção psicológica, e que se aventuram no aconselhamento de pessoas com quadros complexos, colocando-as em grave risco. Alguns até acusam os psicólogos (e outros profissionais) de terem falta de pacientes, razão pela qual se esforçam tanto em sensibilizar e alertar para fenómenos menos perfeitos da condição humana, nomeadamente o risco de saúde e os sintomas de doença que requerem a intervenção de pessoal habilitado. Porque na verdade bastará acreditar que temos uma vida melhor e repetirmos dez vezes o quanto gostamos de nós para que todo o mal desapareça, enquanto os malvados dos psicólogos têm a mania de mexer nas feridas.

Sem dúvida que é melhor ver o copo meio cheio em vez de meio vazio. É inquestionável o valordo pensamento positivo para podermos levar o nosso barco a bom porto.  Mas esta pressão para a felicidade permanente é algo que me tem vindo a incomodar seriamente. Caso para dizer “perdoem-me o incómodo”! É certo que vivemos tempos em que o aumento dos índices de depressão e ansiedade nos dá conta de um crescente mal-estar emocional, que se repercute tantas vezes a nível pessoal, familiar, social, profissional e académico.  Talvez por esta razão haja este foco na positividade, no sentido de trazer alguma esperança e motivação que nos ajudem a sair do fundo do poço e a contrariar a negatividade e a frustração que advém, em parte, desta época virada para o êxito e a perfeição. Irónico e perverso, não? Esforçamo-nos ao máximo para alcançar o máximo, o que nos desgasta, entristece e frustra, retirando-nos toda a energia e confrontando-nos com a imperfeição, e depois voltamos à busca pela perfeição e pelo êxito porque é proibido ficar a lamber as feridas do insucesso.

Uma coisa é aceitar os nossos defeitos, as nossas fragilidades e as adversidades com que nos deparamos e, se possível, tentar transformá-los em oportunidades (de aprendizagem, pelo menos), outra coisa é vivermos em negação, alienados da realidade, sem respeito pelas reações emocionais normais e expectáveis. Em doses normais, tristeza, ansiedade, medo e zanga protegem-nos. Doses excessivas com impacto significativo e limitador requerem ajuda profissional. Doses nulas só existem se estivermos mortos…

Assim, nesta altura em que habitualmente fazemos um balanço do ano e traçamos as metas para o seguinte, convido-vos a colocar na vossa lista de resoluções a leitura deste livro “A arte subtil de dizer que se f#da”, que aborda de forma mais animada e descontraída este meu incómodo. Congratulemo-nos pelas nossas conquistas, sejamos gratos pelo que a vida nos dá (com ou sem o nosso esforço), reconheçamos as derrotas e as perdas (com ou sem a nossa responsabilidade), sejamos brandos e gentis connosco próprios, com as nossas emoções e com o tempo que necessitamos para lidar com as situações, para que possamos fazer uma avaliação realista do nosso ano e traçar objetivos realistas para o próximo.

Nada muda se fizermos tudo da mesma forma. É certo e sabido que mais de metade das resoluções de ano novo falham e que em fevereiro, no máximo, já pouco nos lembramos delas. Não quer isto dizer que devemos deixar as passas de lado! Aliás, tenho até o hábito de convidar os meus pacientes a pensarem em doze desejos para o ano novo. Porque o sonho comanda a vida, porque mal ou bem as resoluções e/ou os desejos nos ajudam a relembrar aquilo que nos fará felizes e a traçar um plano para os alcançar. Mas é importante que estes desejos sejam realistas e alcançáveis, caso contrário a frustração e a falta de esperança rapidamente se voltarão a instalar e pouco restará além do pensamento positivo para que, em jeito de pensamento mágico típico dos três anos, voltemos a achar que temos pouca ou nenhuma intervenção na nossa vida e que basta repetir em frente ao espelho “eu sou feliz” para realmente o sermos.
 
Terminando de forma positiva: Votos de um excelente ano!
 
 
 
 
 


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